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18 agosto 2009

A gente se acostuma


Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora,
logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas,
logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E porque à medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã,
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode
perder o tempo da viagem.
A comer sanduíches porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir a janela
e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra,
aceita os mortos e que haja números para os mortos.
E aceitando os números,
aceita não acreditar nas negociações de paz.
A gente se acostuma esperar o dia inteiro
e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja
e o que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro,
para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes,
a abrir revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir a comerciais.
A ir ao cinema, a engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata de produtos.
A gente se acostuma à poluição.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar. À luta.
À lenta morte dos rios.
E se acostuma a não ouvir os passarinhos,
a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali,
uma revolta acolá.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila
e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés
e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro,
a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer,
a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito
porque tem sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos,
para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida,
que aos poucos se gasta e, que,
de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colassanti

16 comentários:

EDUARDO POISL disse...

Um texto bem real, muita coisa é assim mesmo, a gente se acostuma com tudo, mesmo com o que não queremos, mais como o poeta diz a gente se acostuma, e a vida segue assim mesmo.
Beijos com todo meu amor

Rosani disse...

Nossa que reflexão esse texto me trouxe agora, como gente se acostuma com tudo isso, pior q perdemos nos mesmo nessa situação de se acostuma. Beijos, amiga


Obs: tive mesmo q destiva o blog, o novo endereço é

http://rosani22.blogspot.com/

aapayés disse...

Una dulzura reflexión e intensa nos entregas, hermoso

Un abrazo muy grande
Saludos fraternos

Mª Dolores Marques disse...

OLá....

Vim deixar o meu carinho neste início de dia.

"A gente se acostuma" a lembrar de amigos que mesmo longe estão perto.

Bjs
Dolores Marques

Osvaldo disse...

Sónia;

Acredito que a gente acaba por aceitar, mas sem nunca se acostumar...

Mas o texto é belo e real.

bjs,
Osvaldo

Anônimo disse...

Sonia,esse texto é maravilhoso!Uma chacoalhada pra acordar e fazer alguma coisa da vida!Adorei!Bjs,

Graça Pereira disse...

A gente se acostuma...até á dor e quando a "despe" notamos que nos falta qualquer coisa! Um bj Graça

mARa disse...

Amo esse texto!
Bela escolha, a gente se acostuma, somos seres adaptáveis e assim vivemos, e quando as vezes reclamamos, somos seres deixados a margem.
Mas, ainda assim viver os bons momentos e fazer dos outros não tão bons, bons também.

Beijo Lilás!

ótimo dia! guria linda!!

FOTOS-SUSY disse...

OLA SONIA, EXTRAODINARIO TEXTO, BEM REAL MAS TEMOS, QUE ACEITAR A VIDA COMO ELA E...
FELIZ DIA!!!

ABRACO.

SUSY

Anônimo disse...

Mesmo que nossa vida seja cotidiana é preciso sempre mudar nosso olhar e ver a mesma coisa com outros olhos .

beijos.

Sandra disse...

Texto maravilhosso..real...emocionante...
mas a vida é assim mesmo...a gente se acostuma!!!

Tenha um bom dia!

Beijos...

FERNANDINHA & POEMAS disse...

QUERIDA SONIA... TENS TODA A RAZÃO AMIGA... ATÉ JÁ NÃO NOS QUEIXAMOS... ADOREI... BEIJOS!FERNANDINHA

A.S. disse...

Sónia...

Este texto é como um grito de alerta!
Quebrar todas as rotinas deve ser uma regra a seguir sem hesitações!


Beijos...

Wanderley Elian Lima disse...

Tomei conhecimento deste texto na faculdade e nunca mais esqueci. Belíssimo
Um abraço

CarlaSofia disse...

Gostei muito de passar pelo seu blog. Este poema leva-nos a reflectir o quanto podemos mudar e melhorar as nossas vidas.
deixo aqui um sorriso
*universosquestionáveis*

O mar me encanta completamente... disse...

Uma viagem entre a poesia
e a prosa, farta de cores e odores.
Numa musicalidade que envolve.

Beijinho

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Gaúcha, nos pampas nascida Um grande sonho acalentei Morar numa ilha encantada Cheia de bruxas e fadas. Nessa terra cheia de graça Onde se juntam todas as raças, Minha ilha lança ao poente O azul espelhado da lagoa, O verde silêncio das montanhas, O rumorejar de um mar azul Que beija apaixonado a areia da Minha ilha de renda poética. Não importa se há sol ou chuva, A mágica ilha é sempre azul, Fica gravada na alma e Quem aqui vem sempre vai voltar, Para descobrir novos caminhos, Novos destinos, pois Esta magia nunca irá acabar.
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